Dona de creche clandestina é indiciada por crimes de tortura e maus tratos contra alunos

A Polícia Civil indiciou Caroline Florenciano dos Reis Rech, 30, proprietária de uma creche clandestina, situada no Bairro Sol Nascente, na cidade de Naviraí, pelos crimes de "tortura, maus tratos e exposição da vida ou saúde de outrem a perigo direito ou iminente e uma cuidadora por omissão perante as torturas e maus tratos", além da ministração de medicamento cujo efeito colateral é sonolência.

O inquérito policial foi concluído e encaminhado nesta quarta-feira (19/7) ao Poder Judiciário. A proprietária segue presa preventivamente.

Diante de documentos colhidos verificou-se que o estabelecimento, denominado Cantinho da Tia Carol, apesar de popularmente conhecido como creche, tratava-se de residência que prestava serviços de cuidados a crianças, sem fins educacionais e não possuía alvará de funcionamento. A investigação, de responsabilidade da Delegacia de Atendimento à Mulher (DAM) de Naviraí, apurou denúncias de maus-tratos, tortura e omissão cometidos pelas investigadas, contra, pelo menos, 20 crianças de zero a sete anos.

Os elementos probatórios coletados ao longo da investigação apontam que a proprietária agredia física e psicologicamente as crianças de maneira explícita, convicta da impunidade de cometer os atos ilícitos há meses, sem que nenhuma ação fosse tomada. Estava convicta nas dissimulações que fazia com os pais das vítimas e segura de que não seria descoberta porque boa parte das crianças sequer conseguia falar, já que eram bebês.

Os depoimentos são consistentes e confirmam diversas informações que levam à conclusão de que as violações ocorridas no local eram sistêmicas, contínuas e extremamente graves, a ponto de ter colocado em risco a vida de inúmeras crianças, há, no mínimo, seis meses, quando a proprietária passou a cuidar das crianças no estabelecimento. O local atendia crianças entre zero e sete anos de idade, no Bairro Sol Nascente, e cobrava valor médio de R$280, por criança.

Entre as agressões narradas pelas testemunhas há relatos de tapas pelo corpo, pescoço, rosto, beliscões e puxões de cabelo. Os atos serviam para castigar e disciplinar as crianças, mas, as agressões eram imputadas a outras crianças ou a algum tipo de acidente doméstico, pela proprietária da creche, quando questionada pelos pais.

Alguns episódios relatados no inquérito chamaram a atenção da Polícia Civil durante a investigação. Em um deles, a proprietária do local teria esfregado a calcinha suja de fezes no rosto da vítima, de seis anos, portadora do espectro autista, a fim de puni-la por defecar e doutriná-la conforme seu método, tendo a criança relatado que a proprietária mandou que ela ainda comesse as fezes, mas a criança se negou.

Outro relato aponta que uma criança de três anos teria vomitado durante uma refeição e a proprietária teria esfregado o prato com o vômito no rosto da criança. Há ainda, relatos de que crianças faziam xixi na roupa, e eram colocadas em situação vexatória porque a proprietária obrigava as outras crianças a fazerem roda, bater palmas e os chamarem de ‘mijões’, além disso ameaçava de cortar o órgão genital das crianças caso voltassem a fazer xixi em seu colhão.

Houve relato de que uma das crianças teve a roupa molhada de xixi esfregada no rosto como forma de castigo. De acordo com o relato da mãe de uma das crianças, de sete anos, a filha contou que devia ficar sentada assistindo tv, porque se fizesse bagunça a proprietária iria deixá-la de castigo, ajoelhada no milho até o joelho sangrar.

Outra mãe perguntou para o filho por que ele nunca havia falado sobre tais agressões, ele respondeu que não falou porque a proprietária o ameaçou, dizendo que caso ele falasse, iria colocá-lo de castigo, deixando-o ajoelhado até os joelhos sangrarem. Câmeras instaladas pela Polícia Civil, com autorização judicial, captaram, nas primeiras horas de monitoramento, imagens de agressões físicas contra uma bebê de onze meses, em uma das imagens foi possível observar a proprietária jogando uma mamadeira na direção da criança, que apesar de passar perto não a acerta, sendo a bebê em seguida levantada brutalmente pelo cabelo para ser ajeitada no colchão. 

Em outro momento a bebê foi deixada sozinha com uma mamadeira, enquanto mamava as cuidadoras ficavam em outra parte do cômodo, sem visão da bebê, colocando-a em risco de eventual engasgamento. Há imagem que mostra uma cuidadora colocando um travesseiro sobre o rosto da bebê, antes de colocá-lo embaixo da cabeça dela, para em seguida dar-lhe medicamento para dormir.

A maioria das testemunhas ouvidas relataram que essa bebê era que sofria agressões constantes, ora era empurrada para trás pela cabeça, ora tinha a boca tampada por pano. A bebê passou por exame de corpo de delito e o laudo constatou que ela apresentava eritema associado à discreto edema em região malar esquerda e lesão bolhosa no pé esquerdo, o que corroborou o relato de uma das crianças ouvidas, a qual disse que presenciou essa bebê apanhando inclusive no pé.

As testemunhas, que trabalharam como ajudantes no local no início do ano, disseram que havia restrição ao uso do aparelho celular no local e de contato com os pais, chegaram a avisar algumas mães, que não acreditaram nelas, além disso nunca denunciaram os fatos porque achavam que não acreditariam nelas sem filmagens ou fotos. Relaram que as crianças levavam tapas, chacoalhões e puxões de orelha caso levantassem do colhão para brincar.

Segundo as ex-funcionárias, algumas crianças choravam muito, e elas acreditam que fosse por fome, pois a proprietária só dava mamadeira e às vezes banana, mesmo que as mães tivessem mandado lanches para os filhos. Uma delas contou que a proprietária gritava muito com as crianças, negava alimentos, deixava muito de castigo e não deixava brincar, servia comida apenas na hora de tirar as fotos, e depois que tirava as fotos para enviar para os pais, ninguém mais podia repetir a comida.

Se alguma criança pedisse comida, ela dizia que era morto de fome e olho gordo. Oito crianças, que passaram por situações de agressões físicas e psicológicas ou as presenciaram, foram ouvidas em procedimento de escuta especializada, conforme prevê protocolo estabelecido na Lei nº. 13.431/2017 e relataram espontaneamente os episódios vivenciados. A escuta é feita por profissional especializado e é aplicada em casos de crianças vítimas e testemunhas de violência.

A Polícia Civil ouviu 20 mães/responsáveis legais pelas crianças que foram atendidas no “cantinho”. Os relatos apresentados junto aos de testemunhas e as escutas especializadas efetuadas, permitiram à Polícia Civil reunir elementos que comprovaram os crimes contra, pelo menos, vinte crianças.

Algumas mães apresentaram filmagens onde os filhos aparecem em estado de sonolência induzida. O laudo pericial de vistoria no estabelecimento constou que em relação ao medicamento apreendido, que foi flagrado sendo ministrado pela cuidadora, que confirmou ter ministrado 20 gotas, a uma bebê de onze meses, é contraindicado para menores de 02 anos e é destinado ao controle de enjoos, vômitos e tonturas de diversas origens.

Seu início de ação ocorre 15 a 30 minutos após a administração e a duração da ação pode persistir de quatro a seis horas e causar sonolência. E em crianças pequenas pode causar excitação.

Ainda, segundo o laudo, pode causar efeitos indesejados, como sedação, visão turva, boca seca, retenção urinária, tontura, insônia e irritabilidade, sendo que em caso de dose excessiva do medicamento (superdose), podem ocorrer sonolência intensa, aumento dos batimentos cardíacos, batimentos irregulares, dificuldade para respirar, e espessamento no escarro, confusão, alucinações e convulsões, podendo chegar à insuficiência respiratória e coma.

Segundo apurado, o remédio era ministrado para as crianças, sob a alegação de que era para tratamento de gripe ou preveni-la em crianças que não estavam gripadas. Contudo, seu real intuito era fazer as crianças dormirem durante o período em que ficavam no estabelecimento.

De acordo com os pais, muitas vezes ao buscarem as crianças elas já estavam dormindo, permaneciam dormindo durante toda a noite e ainda tinham dificuldade de acordar durante a manhã, apresentavam sonolência na escola e também fora do horário normal, além de irritabilidade e agressividade.

A mãe de uma criança, de dois anos, relatou que recebeu um vídeo da proprietária do cantinho, com duração de quase um minuto, onde o filho nem piscou. A mãe chegou a desconfiar que o filho estava sendo medicado para dormir, mas sem conseguir ter certeza, deixou de levar o filho ao local.

As investigações devem continuar, inclusive, porque algumas crianças que foram citadas como vítimas, ainda não foram identificadas. A maioria das pessoas foram ouvidas após a prisão da proprietária, que ocorreu na segunda-feira,10/07, quando o caso foi divulgado e os pais perceberam que alguns sinais que acharam estranhos podiam ser na verdade em decorrência de atos de violência vividos pelos filhos.

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