Dom Quixote: Um Manifesto da Insurgência Humana Contra a Alienação

Miguel de Cervantes, na obra-prima Dom Quixote de la Mancha, entrega ao mundo um texto que, à primeira vista, parece uma sátira aos romances de cavalaria, mas que, em uma leitura mais profunda, se revela um poderoso tratado sobre a luta contra a opressão ideológica, a alienação social e os mecanismos de poder que esmagam o indivíduo. Dom Quixote é mais do que um homem enlouquecido pelas leituras de cavalaria: ele é o protótipo do revolucionário, aquele que ousa sonhar com um mundo diferente, mesmo que o mundo ao redor insista em chamá-lo de louco.
Cervantes, escrevendo no contexto de uma Espanha marcada pela decadência imperial, pela concentração de riquezas nas mãos de poucos e pela exploração colonial, constrói em Dom Quixote um personagem que desafia, com a própria existência, as estruturas de poder e os valores dominantes da época. Mas o que torna Dom Quixote uma figura tão poderosa para a análise marxista ou crítica social não é apenas a resistência ao conformismo, mas o fato de que ele encarna a negação da realidade como ela é apresentada pelas classes dominantes. Ele não aceita passivamente o "real"; ele o reimagina, o reformula, o transcende.
### O Cavaleiro da Utopia: Contra a Alienação
Dom Quixote, ao vestir a armadura enferrujada e sair em busca de aventuras, não está apenas fugindo da monotonia da vida rural e decadente; ele está rejeitando a alienação que permeia as relações humanas sob o feudalismo tardio. Na loucura, ele denuncia aquilo que Marx mais tarde descreveria como a alienação do trabalhador: a separação entre o ser humano e sua essência criativa. Assim como o trabalhador industrial do capitalismo é despojado da humanidade ao ser reduzido a uma engrenagem na máquina de produção, o homem do mundo de Cervantes é reduzido a um súdito obediente, incapaz de imaginar alternativas à ordem estabelecida. Dom Quixote rompe com essa lógica ao recusar-se a aceitar o mundo como ele é. Ele não se conforma com o papel que a sociedade lhe atribui: o de um fidalgo empobrecido e inútil. Em vez disso, ele se reconstrói como cavaleiro andante, como agente de transformação.
Por outro lado, Sancho Pança, o fiel escudeiro, é o retrato do homem comum, preso às necessidades materiais e aos valores pragmáticos de uma sociedade desigual. No entanto, ao acompanhar Dom Quixote nas aventuras, Sancho é gradualmente contaminado pela visão quixotesca do mundo. A evolução dele ao longo da narrativa é uma metáfora para a possibilidade de conscientização do proletariado, da transformação de uma massa passiva em um sujeito histórico ativo. Sancho começa como um homem que sonha apenas com governar uma ilha — um reflexo de sua ambição limitada pelas condições materiais —, mas termina como alguém que, mesmo sem abandonar completamente a visão pragmática, é capaz de partilhar da utopia do mestre.
### A Luta Contra os Moinhos de Vento: Símbolo da Resistência
O episódio dos moinhos de vento, frequentemente interpretado como uma demonstração da loucura de Dom Quixote, ganha uma nova dimensão quando analisado sob uma ótica crítica. Os moinhos, símbolos da modernidade emergente e da transformação do campo espanhol pela lógica mercantilista, representam as forças impessoais e incontroláveis do capitalismo nascente. Dom Quixote, ao enfrentá-los, não está apenas lutando contra monstros imaginários; ele está desafiando as estruturas que desumanizam e reduzem o indivíduo a um mero espectador impotente. A derrota não é apenas uma tragédia pessoal, mas um reflexo da dificuldade de enfrentar um sistema que parece invencível.
Nesse sentido, Cervantes antecipa a crítica marxista ao capitalismo ao mostrar como Dom Quixote, apesar da coragem e determinação, é constantemente derrotado pelas forças materiais e sociais que o cercam. Mas essas derrotas não invalidam a luta; pelo contrário, elas a tornam ainda mais significativa. Dom Quixote não é um herói porque vence, mas porque persiste, porque se recusa a aceitar a lógica da derrota como inevitável.
### Dulcineia: A Utopia Inalcançável
Outro elemento crucial da narrativa é a figura de Dulcineia, a camponesa transformada por Dom Quixote em dama idealizada. Dulcineia não existe como Dom Quixote a imagina; ela é uma construção da mente, um ideal que nunca se concretiza. Sob uma perspectiva materialista, Dulcineia é a utopia que guia a luta de Dom Quixote, mas que permanece sempre fora de alcance. Ela simboliza o desejo humano de transcender as condições presentes, de buscar um mundo melhor, mesmo que esse mundo nunca se realize plenamente.
Cervantes, ao criar Dulcineia, não está apenas zombando da idealização dos amores corteses; ele está sugerindo que o ser humano precisa de ideais, de sonhos que o impulsionem para além do imediato. Dulcineia é a promessa de um futuro diferente, a motivação que mantém Dom Quixote em movimento, mesmo quando tudo parece perdido. Assim, Dulcineia é, ao mesmo tempo, uma crítica à alienação ideológica e uma celebração da capacidade humana de imaginar e lutar por algo maior.
### Cervantes e o Humanismo Crítico
Embora Cervantes escreva em uma época anterior às grandes revoluções sociais e econômicas que moldariam o mundo moderno, a obra tem ressonâncias profundas com as correntes de pensamento que, séculos depois, se levantariam contra a desigualdade e a opressão. Dom Quixote é uma obra profundamente humanista, mas não no sentido ingênuo de exaltar o indivíduo isolado. É um humanismo crítico, que reconhece as limitações impostas pelas estruturas sociais, mas que, ao mesmo tempo, celebra a capacidade humana de resistir, de sonhar, de criar.
Dom Quixote não é apenas um personagem; ele é um símbolo da luta contra a resignação, contra a ideia de que o mundo como ele é deve ser aceito sem questionamento. Ele nos lembra que a loucura, muitas vezes, é a única resposta racional a um sistema irracional. E Cervantes, ao contar a história, nos convida a repensar nossa própria relação com o real, com os sonhos e com as forças que nos moldam.
### Conclusão: O Cavaleiro Eterno
Dom Quixote é mais do que uma obra literária; é um manifesto pela dignidade humana, pela capacidade de resistir à alienação e pela luta por um mundo melhor. Cervantes, talvez sem saber, nos deu uma das mais poderosas metáforas para a luta contra a opressão: um homem que, armado apenas com a imaginação e a determinação, ousa enfrentar os moinhos de vento da história. E, mesmo derrotado, ele permanece invencível, porque a luta é, em última análise, a luta de todos nós.