Crônica — Desconto automático, vergonha permanente”

Crônica —  Desconto automático, vergonha permanente”

Por Moacyr Scliar (se estivesse entre nós)

 

Na fila do banco, dona Judite conta as moedas como quem conta os dias. Aposentada há mais de uma década, desenvolveu uma técnica invejável para sobreviver com precisão cirúrgica: cinco reais para o pão, três para o gás (parcelado em doze vezes, veja bem), e um restinho para a rifa da igreja, afinal, esperança é item de cesta básica.

 

Mas, naquele mês, algo estranho aconteceu. O saldo estava menor. Bem menor. Consultou o extrato e lá estava: “Desconto Associativo – Entidade XYZ dos Trabalhadores em Geral”. Dona Judite nunca foi associada nem à turma da caminhada do bairro — imagine a um sindicato com nome de loteamento de condomínio.

 

Descobriu então que não estava só: milhões de Judites, Josués, Raimundos e Efigênias espalhados pelo Brasil afora também viram seus benefícios emagrecerem como quem entrou numa dieta de piranhas. R$ 6,3 bilhões — uma cifra tão surreal que deveria vir acompanhada de trilha sonora dramática e narrador do Fantástico.

 

O ministro Lewandowski, com seu semblante sóbrio, anunciou o ressarcimento. Justo. Necessário. Mas, como diria meu tio Boris, "ressarcir o quê, se o leite já virou coalhada e foi vendido na feira?". A justiça tarda, falha, atrasa o ônibus e ainda esquece o troco.

 

Imagino a cena no céu da burocracia: entidades fantasmagóricas reunidas numa assembleia etérea, discutindo quais aposentados ainda têm algum restinho para ser desviado. O nome da operação é Sem Desconto — um título involuntariamente sarcástico, como chamar de "Segredo de Família" uma fofoca no grupo de WhatsApp.

 

O curioso é que ninguém perguntou à dona Judite se ela queria ser associada. Ninguém ofereceu bombom, não mandou brinde, não prometeu nem mesmo um adesivo de geladeira. O desconto chegou sorrateiro, como visita inoportuna que bebe café, reclama do calor e ainda leva a última fatia de bolo.

 

Sim, haverá ressarcimento. Um dia. Quem sabe. Talvez em parcelas suaves, como quem devolve um pedaço de dignidade por mês.

 

Mas a maior devolução ainda está pendente: o respeito. Esse, infelizmente, não entra em planilha e não rende juros.

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