A Psicanálise, campo que busca compreender as camadas mais profundas do psiquismo humano, nos convida a olhar para os fenômenos cotidianos de maneira mais complexa e reveladora. O uso de som alto em festas, aparentemente um gesto banal e até mesmo culturalmente aceito principalmente em bairros pobres, pode ser interpretado como uma manifestação de um mal-estar psíquico que ultrapassa o simples desejo de celebração. Ao analisarmos esse comportamento sob a ótica psicanalítica, emergem questões essenciais sobre a incapacidade de interação humana, a dificuldade em estabelecer trocas genuínas e a falta de intimidade que permeia as relações contemporâneas.
#### Som Alto e Anulação da Escuta
Uma festa, por definição, deveria ser um espaço de encontro, de convivência e de troca. No entanto, o som alto, ao tornar a comunicação verbal quase impossível, elimina uma das principais ferramentas de interação humana: a escuta. Jacques Lacan, em sua formulação sobre a linguagem, enfatiza que o sujeito se constitui no campo do Outro, isto é, na relação com o outro por meio da palavra. Quando o som alto domina o ambiente, ele promove a anulação da linguagem como mediadora das relações, deslocando o sujeito para uma posição de isolamento psíquico, mesmo em meio a outras pessoas.
Esse isolamento não é apenas uma consequência do ruído, mas um sintoma de algo mais profundo: a dificuldade de suportar a presença do outro enquanto alteridade. O som alto funciona como uma barreira, uma espécie de "ruído defensivo" que evita o encontro genuíno. Ele impede o olhar, o gesto, a expressão verbal ou não verbal que carrega o risco de revelar vulnerabilidades. Assim, o som alto é uma metáfora auditiva para o muro que muitos erguem em torno de si para evitar o confronto com a própria fragilidade e a do outro.
#### Festa como Espaço de Fuga
Do ponto de vista psicanalítico, podemos entender a festa com som alto como um espaço de fuga da intimidade. A intimidade, aqui, é compreendida não apenas como proximidade física, mas como a capacidade de se expor ao outro, de sustentar uma troca autêntica que envolve risco psíquico. Freud já nos alertava sobre o mal-estar na civilização, que se traduz na dificuldade humana de lidar com as exigências da vida em sociedade e com as pulsões que nos atravessam. O som alto, nesse contexto, aparece como uma forma de recalcar a angústia que emerge diante da possibilidade de interação real.
A música alta, ao preencher todos os espaços psíquicos e físicos, oferece uma espécie de alívio imediato. Ela elimina o silêncio, que é onde a angústia muitas vezes emerge, e substitui o diálogo pela vibração sensorial. No entanto, esse alívio é ilusório, pois não resolve a dificuldade subjacente: a incapacidade de estar verdadeiramente com o outro.
#### Papel do Narcisismo e da Cultura do Espetáculo
Outro aspecto a ser considerado é o papel do narcisismo na dinâmica do som alto em festas. Vivemos em uma era em que a cultura do espetáculo e da performance predomina. A festa, nesse cenário, deixa de ser um espaço de convivência para se tornar um palco onde cada um busca ser visto, admirado e validado. O som alto reforça essa lógica, pois desloca o foco da interação para a criação de uma atmosfera de excitação coletiva. Em vez de diálogos significativos, temos corpos que se movem ao ritmo da música, mas que, paradoxalmente, permanecem isolados em seus próprios mundos internos.
#### Superando o Fenômeno: Caminho Psicanalítico
Superar esse fenômeno não é tarefa simples, pois ele reflete estruturas psíquicas e sociais profundamente enraizadas. No entanto, passos podem ser tomados para promover mudanças:
1. Reconhecer o Sintoma: o primeiro passo é reconhecer que o uso do som alto em festas não é apenas uma escolha estética ou cultural, mas um sintoma que aponta para dificuldades psíquicas e relacionais. Esse reconhecimento exige uma reflexão honesta sobre o que está sendo evitado por meio do ruído.
2. Revalorizar o Silêncio: o silêncio, frequentemente temido, precisa ser ressignificado como um espaço de escuta e de conexão. Trabalhos terapêuticos que incentivam a escuta ativa e a tolerância ao silêncio podem ajudar os indivíduos a redescobrir o valor da comunicação genuína.
3. Criar Espaços de Intimidade: promover encontros menores e mais silenciosos, onde a troca verbal e não verbal seja incentivada, pode ajudar a reconstruir a capacidade de se relacionar. Esses espaços devem ser pensados como ambientes seguros, onde as pessoas possam se expor sem medo de julgamento.
4. Reavaliar o Papel da Festa: é preciso resgatar o verdadeiro propósito das festas como celebrações da convivência humana. Isso implica repensar a organização desses eventos, dando mais espaço para a interação e menos para o excesso de estímulos sensoriais.
5. Reconstruir a Capacidade de Estar com o Outro: por fim, o trabalho psicanalítico pode ajudar os indivíduos a enfrentar suas dificuldades de estar com o outro. Isso envolve explorar os medos e defesas que surgem diante da intimidade, bem como desenvolver a capacidade de suportar a alteridade.
#### Conclusão
O uso do som alto em festas é um reflexo de uma sociedade que, ao mesmo tempo que busca a conexão, teme a intimidade. Sob a ótica psicanalítica, ele revela uma profunda incapacidade de lidar com o outro como um sujeito autônomo e complexo. Superar esse fenômeno exige não apenas mudanças comportamentais, mas uma transformação mais profunda nas formas como nos relacionamos conosco e com os outros. É um convite para resgatar a dimensão humana da convivência, onde a palavra, o silêncio e a troca genuína possam finalmente encontrar espaço.