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O Dia em que a Terra Sangrou: Memórias de Pindorama

Publicada em: 22/04/2025 07:31 - Geral

Na madrugada de 22 de abril de 1500, o sol nasceu sobre Pindorama — a terra das palmeiras — como um rubi incandescente no céu. Os Tupiniquim, à beira-mar, observavam as águas tranquilas do Atlântico, onde os espíritos ancestrais dançavam nas ondas. A shamã Aracy, com os cabelos entrelaçados a penas de guará, leu os presságios nas nuvens: "Homens de peles pálidas virão em casas flutuantes. Eles trarão fome de ouro e sede de sangue". Seu aviso ecoou como um lamento, mas o vento o engoliu. 

Quando as caravelas de Cabral rasgaram o horizonte, os indígenas acreditaram serem criaturas míticas: enormes pássaros de madeira com asas brancas. Ofereceram-lhes frutas, flechas de paz e cantos de gratidão à Terra-Mãe. Os portugueses, porém, viram apenas corpos para escravizar, terras para usurpar, almas para converter. A cruz de Cristo, fincada na areia, não foi um símbolo de fé, mas uma âncora de dominação. 

Os séculos que se seguiram foram uma crônica de ferro e fogo. Homens, mulheres e crianças foram caçados como animais. Suas línguas, apagadas; seus deuses, profanados. Os que resistiram viraram pó sob espadas e arcabuzes. Os que sobreviveram foram arrastados para senzalas a céu aberto, onde o açúcar brotava vermelho, tingido de suor e sangue indígena. Quando os corpos nativos começaram a rarear, os navios negreiros cruzaram o oceano, trazendo corpos africanos acorrentados. O ciclo de morte se repetiu, agora ao ritmo dos tambores silenciados pela dor. 

A terra de Pindorama, outrora sagrada, virou mercadoria. Rios foram envenenados por metais, florestas viraram brasas, e o grito dos antepassados virou sussurro sob o barulho das serras. Portugal ergueu impérios sobre ossos — mas uma dívida não se paga com monumentos de pedra. Sangue indígena e africano regou cada quinta de ouro, cada taça de vinho, cada azulejo de Lisboa. 

Hoje, 22 de abril não é "descobrimento". É ferida aberta. É a lembrança de que, enquanto comunidades indígenas lutam por migalhas de território e jovens negros são assassinados nas periferias, a Europa ainda se banha no mito do "civilizador". A dívida é imensurável: não há ouro no mundo que pague genocídio, não há perdão que lave séculos de chibatadas. 

Mas a shamã Aracy ainda canta, mesmo que em memória. Seu povo, como a semente do jatobá, resiste sob o concreto. Nas favelas, nas aldeias, nas rodas de capoeira, o Brasil profundo reclama seu lugar: "Existimos porque resistimos". A reparação não é caridade — é justiça. Devolver terras, reconstruir histórias, ouvir as vozes que o mar tentou calar. 

Enquanto o Atlântico, eterna testemunha, murmura nomes esquecidos em suas marés, o dia 22 de abril nos convida a escolher: continuar glorificando invasores ou honrar os verdadeiros donos desta terra? A resposta está no chão que ainda guarda as cicatrizes das correntes. E no futuro, que só florescerá quando a dívida for reconhecida — não em moedas, mas em verdade. 

Nota final:

Esta história não é passado. É espelho. Enquanto o indígena lutar por enterrar seus mortos em paz e o negro exigir reparação pelo ontem que ainda dói, 1500 não terminou. O mar continua devolvendo corpos. Até quando?

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