Dourados dorme. Seus campos, banhados pelo sol que doura o milho, carregam também o peso de histórias repetidas: "Trabalhe em silêncio, aceite o que vem, não questione". Mas nas margens do Rio Brilhante, onde as lavadeiras cantam desafinadas, algo racha o solo. Uma semente — trazida pelo vento de um avô Guarani que plantava mandioca e dúvidas — cai na terra. Ninguém vê, mas ela sussurra: "E se ‘sempre foi assim’ for só medo de mudar?"
Na escola municipal Professora Eva Luz, a professora Marília — neta de colonos que perderam a terra para o gado — mostra aos alunos uma foto: Dourados nos anos 60, com matas onde hoje há soja. "Quem decide o que vira deserto e o que vira ouro?", ela pergunta. Uma criança, de uniforme remendado, responde: "O dono da máquina, tia". A sala ri. Mas o riso é semente.
Enquanto isso, no assentamento Itamarati, Dona Socorro — que virou símbolo ao erguer uma horta comunitária em terra seca — lembra: "Antes de ser ‘sem-terra’, eu era ‘sem voz’. Agora, sei que voz rega planta".
Seu Osmar, 58 anos, dirige há décadas a BR-163. Um dia, viu um caminhão da prefeitura derrubando casas à beira do rio. "Era gente como eu, Seu Osmar?", perguntou-lhe um jovem de boné do MST. Ele não respondeu. Mas naquela noite, no boteco da Dona Marta, contou: "O rio tá sujo de sangue invisível". A frase virou verso na música do rapper indígena Werá, tocada na rádio comunitária.
Não foi um herói que mudou Dourados. Foram gestos teimosos:
- O grafite da Praça Antônio João, onde uma jovem pintou o rosto de Marçal de Souza (líder indígena assassinado) ao lado da frase: "Quem tem memória, rega futuro".
- A feira dos agricultores familiares, que trocam veneno por adubo orgânico e medo por cooperativismo.
- O sindicato dos professores, que transformou greves em aulas públicas na praça: "Ensinar história é mostrar que o agronegócio nasceu de grilagem".
Os "donos do poder" riram. Chamaram a floresta de "erva daninha". Mas subestimaram o rio. Porque a verdadeira esquerda não chega com discursos. Ela chega como cheiro de terra molhada após a seca — lembra que a vida volta. Como mãos que carregam um caixão de despejo e, no caminho, viram protesto. Como a criança que pergunta ao pai: "Por que o patrão tem 10 caminhões e nós só dívida?"
Hoje, o Rio Brilhante não sussurra. Ele canta. Sua voz é feita de:
- Reuniões no CRAS (Centro de Referência de Assistência Social), onde mães exigem creches 24h.
- Festivais de teatro na periferia, onde o palco é um trator desativado e a peça se chama "Quem Matou o Rio?".
- Vereadoras como Tereza Ximenes, primeira indígena eleita, que propõe leis para titular terras quilombolas.
Dourados, você já sabe:
- A semente virou raiz. - A raiz virou árvore. - A árvore virou ponte.
O conservadorismo oferece um mapa velho. A esquerda oferece uma enxada. Qual você usa para plantar?
O rio não pergunta. Ele já corre pro mar. E leva consigo quem ousa navegar.