Tocando Agora: ...

Grande Sertão: Veredas - O Sertão como Campo de Batalha da Consciência de Classe (por Tácito Loureiro)

Publicada em: 29/05/2025 09:09 - Artigos

Não se engane pela paisagem agreste ou pela roupagem do cangaço. Grande Sertão: Veredas, obra-prima de Guimarães Rosa, não é um mero épico regionalista ou uma saga existencialista dissociada do chão concreto. É um campo de força ideológico, uma radiografia profunda e dolorosa das estruturas de opressão que moldam o sertão nordestino – e, por extensão, todo o Brasil profundo. Sob a névoa mítica e o fluxo desconcertante da linguagem rosiana, pulsa uma crítica social feroz, uma análise materialista da luta de classes disfarçada de monólogo existencial.

Riobaldo, o narrador-jagunço, não é apenas um homem em busca de Deus ou do Diabo. Ele é o produto e o agente de um sistema brutal. Seu relato, tortuoso como as veredas do título, revela a materialidade da fome, da posse da terra e da violência como ferramenta de dominação. Os bandos de jagunços não são meros fora-da-lei românticos; são exércitos privados a serviço dos coronéis-latifundiários, a expressão armada da luta pelo controle dos meios de produção fundamentais: a terra e a água. Cada embate, cada "recontro", é um episódio na guerra civil não declarada que sustenta o poder dos grandes proprietários. Riobaldo oscila entre a consciência dessa engrenagem perversa ("O senhor sabe: o sertão é do tamanho do mundo" – um mundo de exploração) e a internalização de seus valores, acreditando, por vezes, na própria mitologia da honra e da coragem que justifica o sangue derramado.

Aqui reside a genialidade crítica de Rosa: ele expõe a alienação profunda do sujeito oprimido. Riobaldo luta, mata e arrisca a vida não por uma causa própria, mas para defender os interesses de uma classe que o explora. Sua busca por identidade e sentido é atravessada pela luta de classes que ele ainda não nomeia plenamente, mas que sente na pele, no cansaço, na traição, na morte dos companheiros. O "Diabo" que ele tanto evoca não é uma entidade metafísica, mas a própria lógica desumanizadora do capitalismo agrário, o pacto faustiano que exige a venda da alma (a consciência, a solidariedade de classe) em troca de uma sobrevivência precária ou de um fugaz poder dentro da engrenagem.

A figura de Diadorim é central nesta leitura esquerdista. Mais do que um enigma de gênero, Diadorim representa a ruptura potencial. A força, a inteligência estratégica, a lealdade feroz a um ideal (a vingança, sim, mas também uma ética que transcende o mero banditismo) apontam para uma possibilidade de resistência que não se enquadra nos padrões patriarcais e classistas do sertão. Seu amor por Riobaldo, proibido e trágico, é uma metáfora poderosa da solidariedade de classe reprimida, do vínculo humano que poderia unir os oprimidos contra seus algozes, mas que é sistematicamente destruído pela violência do sistema. A morte de Diadorim não é apenas uma tragédia pessoal; é o assassinato simbólico da possibilidade revolucionária, da união que desafia as hierarquias estabelecidas.

A própria linguagem de Rosa é um ato político. A síntese radical do popular e do erudito, a invenção vocabular, a subversão da sintaxe – tudo isso é um assalto ao monopólio da cultura pela elite. Rosa devolve a palavra ao sertanejo, não de forma folclórica, mas com uma complexidade e uma profundidade filosófica que desafia a visão hegemônica e colonizada do "homem simples do interior". Ele cria uma língua do oprimido que é, em si mesma, um instrumento de libertação, uma forma de dizer o mundo e a luta de classes a partir de uma perspectiva subalterna, porém densa e poderosa.

As "veredas" do título não são apenas caminhos físicos. São as rotas possíveis da consciência, os desvios e atalhos na busca por uma saída para a opressão. O grande sertão não é apenas uma geografia; é o espaço social imenso e desolador da desigualdade, onde a luta pela sobrevivência é também uma luta pela humanidade. O final ambíguo, com Riobaldo sobrevivente mas marcado, "contando" sua história, é profundamente dialético. Não há vitória revolucionária clara, mas há a sobrevivência da narrativa, da memória da luta, da dor e da exploração. Há a consciência adquirida, ainda que trágica e incompleta, de que "o real não está na saída nem na chegada. Ele se dispõe para a gente é no meio da travessia".

Grande Sertão: Veredas é, portanto, muito mais que um monumento literário. É um tratado político escrito em sangue, suor e linguagem reinventada. É um mapa das contradições de classe do Brasil agrário, um grito abafado de dor e revolta, e uma prova irrefutável de que a grande literatura, quando autêntica e profunda, é sempre, inevitavelmente, um ato de desvelamento das estruturas de poder. Rosa não nos dá respostas fáceis, mas nos obriga a encarar, nas veredas tortuosas da consciência de Riobaldo, o rosto brutal da exploração e a centelha tênue, porém persistente, da possibilidade de outra travessia. A travessia da libertação.

Compartilhe:
Comentário enviado com sucesso!
Carregando...