Dourados: O Silêncio Antropológico que Grita aos Céus do Mato Grosso do Sul
Publicada em: 01/06/2025 10:45 - Dourados
Se o único critério para a criação de um curso de graduação em uma universidade pública fosse a densidade científica do objeto de estudo, a urgência do conhecimento a ser produzido e a relevância intrínseca do campo para decifrar a realidade local, então Dourados, no coração do Mato Grosso do Sul, seria há décadas não apenas uma sede, mas um epicentro nacional da Antropologia. A ausência de um curso específico na área, em contraste com a riqueza humana e cultural que pulsa em seu solo, é um paradoxo gritante – um testemunho silencioso de como outros critérios, menos nobres, frequentemente sufocam a lógica pura da investigação científica.
Dourados não é apenas uma cidade; é um laboratório vivo, complexo e pungente de processos antropológicos fundamentais. Imaginemos o cientista puro, desprovido de vícios políticos ou modismos acadêmicos, olhando para o mapa do Brasil em busca do local ideal para instalar um centro de excelência em Antropologia. Seus olhos inevitavelmente se fixariam nesta região, atraídos por uma constelação de fatores que constituem um campo de estudo ímpar e insubstituível:
1. O Caldeirão Étnico em Ebulição: aqui reside uma das maiores populações indígenas urbanas do país, com destaque para as aldeias Jaguapiru e Bororó, lar do povo Guarani-Kaiowá. A complexidade da relação dessas comunidades com a terra sagrada (o tekoha), a luta por direitos fundamentais, os impactos devastadores do confinamento, os processos de resistência cultural e a tensão constante entre tradição e modernidade urbana oferecem um objeto de estudo de profundidade abissal. Não se trata de estudar "o indígena" de forma genérica, mas de mergulhar em um epicentro específico de conflitos civilizatórios, identitários e existenciais de alcance global. A presença significativa dos Terena e de migrantes de outras etnias adensa ainda mais este mosaico.
2. A Ferida Exposta da Questão Fundiária: Dourados está no olho do furacão de um dos conflitos fundiários mais longos, violentos e simbolicamente carregados do Brasil. A disputa por terra envolve povos originários, grandes proprietários rurais (muitos deles descendentes de colonos pioneiros), pequenos agricultores e o próprio Estado. Esta arena de tensão é um caso paradigmático para estudar a construção social do território, a violência estrutural, a memória do conflito, as narrativas em disputa e a (in)efetividade das políticas públicas. A Antropologia, com suas ferramentas para entender a dimensão simbólica e relacional destes processos, é a ciência capaz de iluminar as raízes profundas do problema.
3. A Encruzilhada das Fronteiras (Geográficas, Culturais e Econômicas): localizada próximo à fronteira com o Paraguai, Dourados é um polo regional de comércio, serviços e agricultura intensiva (soja, cana, gado). Esta posição gera fluxos intensos de pessoas (migrantes nacionais e internacionais, paraguaios), mercadorias, culturas e identidades. Estudar como essas fronteiras – físicas e simbólicas – são negociadas, transgredidas, reforçadas e ressignificadas no cotidiano é um campo fértil para a Antropologia Urbana, Econômica e das Migrações. A cidade é um organismo em transformação acelerada, moldada por forças globais e locais.
4. O Crescimento Explosivo e as Novas Configurações Sociais: de cidade pequena a um dos maiores centros urbanos do estado, Dourados vivenciou uma explosão demográfica e uma expansão urbana caótica nas últimas décadas. Este fenômeno cria novos bairros periféricos, novas formas de sociabilidade, novos problemas urbanos e novas identidades. A Antropologia Urbana teria um vastíssimo campo para mapear essas dinâmicas, as estratégias de sobrevivência, as redes de solidariedade e os novos conflitos que emergem nesta teia social em constante reconfiguração.
A Lógica Científica Imperativa: diante deste quadro, a pergunta que o cientista puro faria não seria "Por que criar um curso de Antropologia em Dourados?", mas sim "Como é possível que ainda NÃO exista um curso de Antropologia em cada universidade de Dourados?". A riqueza empírica é tão avassaladora, tão densa, tão pedagógica por si só, que a ausência do curso equivale a ter um observatório astronômico de primeira linha instalado no deserto do Atacama, mas sem os telescópios. O objeto de estudo exige o método, a teoria e a formação especializada que a Antropologia oferece.
O Silêncio que Denuncia Outros Critérios: a persistência desta ausência revela, portanto, que outros fatores pesam mais que a pura lógica científica na criação de cursos. Interesses políticos regionais, a priorização de áreas vistas como mais "produtivas" ou "tecnológicas" em um sentido imediatista, a falta de pressão organizada, a distribuição desigual de recursos e até uma certa miopia que não enxerga a urgência do conhecimento humano diante do desenvolvimento econômico desenfreado – todos esses elementos concorrem para silenciar a voz da ciência antropológica onde ela mais precisaria ecoar.
Dourados não precisa justificar a existência de um curso de Antropologia. Dourados é Antropologia em estado bruto, pulsante, dramático e fascinante. A terra vermelha do Mato Grosso do Sul, manchada pela história e fertilizada por culturas milenares e contemporâneas, clama por olhares treinados para decifrar suas complexidades, dar voz a seus múltiplos atores e contribuir para construir pontes sobre os abismos que a assolam. Se o critério fosse apenas – e sempre – o científico, o grito antropológico de Dourados já teria encontrado, há muito tempo, sua ressonância acadêmica dentro de suas próprias universidades. O silêncio atual é menos sobre a falta de objeto e mais sobre a falta de ouvidos sintonizados com a verdadeira vocação do saber.
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