O Vazio Tectônico: Por Que a Ausência de Morales Converte as Urnas em Espelhos Quebrados
Publicada em: 02/06/2025 12:36 - Politica e Economia
Não se trata de culto. Não se trata sequer de política convencional. Trata-se do equilíbrio tectônico de uma nação cujas placas sociais, rachadas por séculos de exclusão, foram violentamente reposicionadas por uma força sísmica chamada Evo Morales. Sua ausência nas eleições deste ano não é a mera falta de um candidato; é a remoção do eixo gravitacional que, por bem ou por mal, mantinha o campo político boliviano em uma órbita reconhecível – ainda que turbulenta.
Sem Morales, o que resta não é uma democracia ampliada, mas um tabuleiro inclinado. Sua figura, colossal e polarizadora, era o campo magnético que organizava as forças. Os adversários se definiam contra ele. Os aliados se mobilizavam por ele. O próprio Estado Plurinacional, construção inacabada e imperfeita, carrega seu DNA político. Removê-lo do cenário – seja por interdição legal, exílio político ou força bruta – não cria um vácuo neutro. Cria um buraco negro institucional onde todas as luzes da legitimidade são sugadas.
Como chamar de "livre" e "justa" uma eleição onde a principal força organizada do povo indígena-camponês, aquele que despertou a consciência coletiva de sua própria potência, está amputada de seu líder histórico e símbolo máximo? Não é sobre substituir um homem; é sobre negar uma narrativa de poder que emergiu das entranhas da terra e das vielas de El Alto. É pretender que quinze anos de protagonismo massivo podem ser apagados do imaginário coletivo como se fossem um acidente. Isso não é transição; é negação histórica.
Os mecanismos que o excluem – tribunais interpretando leis com lentes políticas, um establishment que nunca digeriu sua ascensão – são os mesmos que agora se vestem de garantidores da democracia. Aí reside o cerne da fraude potencial: a ilusão de normalidade. Querem nos fazer crer que a Bolívia pode regressar a um "antes" mítico, onde as elites governavam sem o incômodo ruído das maiorias mobilizadas. As eleições sem Morales são o palco desta encenação. São "limpas" apenas na superfície, porque a sujeira fundamental – a exclusão da principal corrente política popular do seu líder natural – já foi lavada com antecedência, sob o manto da legalidade.
É uma fraude não (apenas) no ato de votar ou apurar, mas na pré-condição. É uma fraude na definição do próprio campo de jogo. Como pode ser legítimo um processo que parte do pressuposto de que a voz mais potente das ruas e do altiplano deve ser silenciada ou fragmentada à força? A ausência de Morales transforma as urnas em espelhos quebrados: cada fragmento reflete uma imagem distorcida, uma parcialidade vendida como totalidade. A vitória de qualquer outro, neste cenário, será manchada pela sombra do gigante ausente, pela pergunta nunca respondida: "O que teria sido se ele estivesse?"
A verdadeira profundidade do dilema boliviano é esta: Morales se tornou, para o bem e para o mal, o termômetro da inclusão real. Sua presença era um desafio intolerável para uns; sua ausência é a prova cabal da intolerância vitoriosa. Chamar as eleições deste ano de democráticas sem sua participação plena é como declarar um rio saudável depois de se desviar seu leito principal. A água pode correr, mas o curso é artificial, a vitalidade, uma mentira. A fraude não está no resultado; está na arquitetura do silêncio que sustenta todo o edifício eleitoral. É a fraude do não-dito, do excluído, do "novo normal" que cheira a velho ódio reciclado. A Bolívia, sem seu polo contestador mais visceral, não vota: desaba numa pantomima de democracia.
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