Tocando Agora: ...

O Rio que Traz a Lua no Dorso (por Tácito Loureiro)

Publicada em: 08/06/2025 09:15 - Geral

O Pantanal não é paisagem. É pulsação. É a respiração profunda da terra quando o sol, um ourives incansável, derrete o ouro sobre o capim dourado e o rio Paraguai, esse serpente ancião de águas paciências, desenha o mapa do mundo no seu lombo. Aqui, o tempo não anda; navega. Flutua sobre as baías, espelhos quebrados onde o céu se banha e as nuvens, brancas garças desgarradas, se refazem. O amanhecer não rompe, desabrocha – um botão de vitória-régia gigante desfraldando pétalas de névoa cor de pérola, tingidas pelo canto rouco do João-grande, o primeiro trovão do dia.

Os sons não são barulho; são a língua primordial. O estalar seco do jacaré é o bater de um tambor submerso; o assovio da ariranha, um fio de prata tecendo a manhã; o ronco do cervo, o baixo contínuo da noite. E no silêncio que os costura, o zumbido do mundo, o suspiro da terra alagada.

Homem aqui não domina; aprende. O pantaneiro é filho do ritmo das águas, irmão do tuiuiú, que empoleirado nas pernas finas de bailarino cósmico, observa com olhos de âmbar a eterna dança da cheia e da seca. Os passos no chão úmido são orações; o laço, uma extensão do braço, não para capturar, mas para conversar com o gado, criaturas de músculo e poeira que entendem o sussurro do vento no cambarazal antes de qualquer radar. A viola de cocho não toca canções; evoca os espíritos das águas passadas, das cheias que vieram como bênçãos inundantes, trazendo vida nos dorsos lamacentos. Cada acorde é um registro da memória do rio, um lamento que vira festa, uma guarânia molhada de orvalho e suor.

O fogo na fogueira à noite não é só luz; é altar. É onde as histórias nascem, torcidas como raízes de piúva, contando de Pai do Mato que guarda os segredos das florestas inundadas, de Mãe-d'água que seduz e ensina o respeito ao rio, de curupiras que não atrapalham, mas testam o coração daqueles que se perdem no vazante, quando a água recua e revela o desenho das veias na terra rachada, uma tapeçaria de cicatrizes férteis.

A seca não é morte; é alquimia. O barro que se abre em gretas profundas como bocas sedentas é o mesmo que guarda a promessa da volta. É quando o Pantanal mostra os ossos, a estrutura sagrada, e os pássaros, pintores alados, descem em bandos – tuiuiús, colhereiros, biguás – para inscreverem com os bicos, as penas, o voo, hieróglifos efêmeros no céu infinito, um poema escrito a cada entardecer com tinta de sol poente.

Ver o pôr-do-sol no Pantanal não é assistir; é ser batizado. O horizonte incendeia-se, um forno cósmico derramando lavas de carmim, púrpura e ouro líquido sobre as águas quietas, transformando tudo num mosaico de Terena, num cordel de luz, num abraço de cores que fala diretamente à alma, lembrando que beleza não é adorno, é essência, é respiração.

E no centro desse teatro imenso, a garça-azul, esse fragmento do céu caído, pousa numa perna-de-moça. Ela não pesca; medita. É a senhora da quietude, o ponto de equilíbrio entre o céu e o espelho d'água, entre o rugido da onça-pintada – o trovão com peles, o segredo que caminha nas sombras úmidas – e o silêncio atordoante que vem depois.

O Pantanal não se mostra; se revela. Aos poucos. Aos que param para ouvir o murmúrio das raízes embebidas, o estalo do carandá queimado pelo sol, o canto noturno do sapo-boi, uma serenata grave para as estrelas que aqui, longe das cidades, não cintilam – derramam-se, leite cósmico escorrendo pelo manto escuro, iluminando a jornada noturna do tamanduá-bandeira, esse fantasma gentil farejando formigas sob a lua, que o rio, fiel, carrega suavemente no dorso prateado, navegando devagar, sempre devagar, rumo ao coração úmido do mundo.

Aqui, ser obra de arte não é exceção; é a lei primeira, escrita não em tela ou mármore, mas na lama, na água, no voo, no silêncio que fala todas as línguas. O Pantanal é o pulso visível da Terra, um úmido verso épico escrito a várias mãos – das águas, dos bichos, dos homens que aprenderam a escutar –, ecoando as guarânias mais profundas, a cerâmica mais antiga, a cor mais pura de Mato Grosso do Sul: o verde que é água, o azul que é céu, o dourado que é vida pulsante no imenso, sagrado, berço alagado.

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