O Céu que Escorre na Raiz do Mundo (por Tácito Loureiro)
Publicada em: 09/06/2025 09:06 - Geral
O Pantanal não tem horizonte. Tem respiração. É o pulmão úmido da terra quando a primeira luz, ourives calmo, esparrama ouro líquido sobre o capim, e o rio Paraguai, serpente primordial de paciência infinita, carrega nas costas o peso do céu inteiro. Aqui, o tempo não passa; flutua. Desliza sobre as baías, espelhos-d'água onde o firmamento se banha e as nuvens, algodões desgarrados, refazem o mapa do possível. A madrugada não irrompe; desabrocha. Como uma flor de vitória-régia gigante abrindo suas pétalas de névoa nacarada, tingidas pelo grito rouco do João-grande – o primeiro trovão que rasga o véu da noite.
Os sons não são ruídos; são a gramática do início. O estalo seco do jacaré é o rufar de um tambor submerso; o assobio da ariranha, um fio de prata costurando o amanhecer; o ronco do cervo, o baixo contínuo que sustenta o silêncio. E no intervalo entre um e outro, o zumbido do mundo, o suspiro profundo da terra encharcada, o próprio som da vida fermentando na lama.
O homem aqui não conquista; decifra. O pantaneiro é filho do ritmo das cheias, irmão do tuiuiú que, sobre pernas de bailarino cósmico, observa com olhos âmbar a eterna coreografia da enchente e da vazante. Os passos no chão úmido são preces; o laço, extensão do braço, não para aprisionar, mas para dialogar com o gado, criaturas de músculo e poeira que leem o vento no cambarazal antes que ele sopre. A viola de cocho não emite notas; evoca. Chama os espíritos das águas passadas, das cheias generosas que trouxeram vida sobre dorsos lamacentos. Cada rasqueado é um verso inscrito na memória do rio, um lamento que vira fandango, uma guarânia embebida em orvalho e cansaço sagrado.
O fogo na fogueira, à noite, não é só clarão; é altar. É o útero onde as histórias nascem, retorcidas como raízes de piúva, narrando o Pai do Mato, guardião dos segredos nas matas alagadas, a Mãe-d'água, que seduz e ensina o respeito às correntezas, os curupiras que não atormentam, mas sondam o âmago dos que se perdem no vazante, quando a água recua e desnuda o desenho das veias na terra rachada, uma tapeçaria de cicatrizes férteis e promessas.
A seca não é fim; é alquimia. O barro que se abre em fendas profundas como bocas sedentas é o mesmo que guarda o juramento do retorno. É quando o Pantanal exibe seus ossos, a ossatura sagrada, e as aves, pintores alados, descem em nuvens vivas – tuiuiús, colhereiros, biguás – para gravar com bicos, penas e voos, hieróglifos efêmeros no firmamento sem fim, um poema reescrito a cada crepúsculo com tinta de sol derretido.
Assistir ao pôr-do-sol pantaneiro não é observar; é ser consagrado. O horizonte incendeia-se, fornalha cósmica derramando lavas de carmim, púrpura e ouro derretido sobre as águas imóveis, transmutando tudo num mosaico indígena, num cordel de luz, num abraço cromático que fala direto ao espírito, lembrando que a beleza não é ornamento, é alicerce, é o próprio ar que se respira.
E no centro desse teatro infinito, a garça-azul, fragmento de céu caído, equilibra-se num aguapé. Ela não pesca; contempla. É a senhora da quietude, o eixo imóvel entre o firmamento e seu reflexo, entre o rugido da onça-pintada – trovão revestido de peles, mistério que caminha nas sombras úmidas – e o silêncio absoluto que se instala depois, um manto pesado como o dorso de um jacaré adormecido.
O Pantanal não se entrega; sussurra. Aos poucos. Aos que se detêm para ouvir o murmúrio das raízes embebidas, o estalar do carandá sob o sol inclemente, o canto grave do sapo-boi, serenata noturna para as estrelas que aqui, livres da névoa urbana, não cintilam – derramam-se. Leite cósmico escorrendo pelo manto escuro, iluminando a jornada noturna do tamanduá-bandeira, fantasma gentil farejando formigas sob a lua prateada. Essa mesma lua que o rio, fiel barqueiro, carrega com ternura infinita sobre seu dorso escuro, navegando manso, sempre manso, rumo ao úmido coração do mundo.
Aqui, cada instante não é apenas belo; é sagrado. É a lei primordial, escrita não em tela ou bronze, mas na lama fecunda, na dança da água, no traço do voo, no silêncio que fala todas as línguas do princípio. O Pantanal é o pulso visível do planeta, um verso épico úmido escrito a muitas mãos – das correntezas, das feras, dos homens que aprenderam a decifrar o murmúrio –, ecoando as guarânias mais profundas, a cerâmica mais antiga, a cor mais essencial de Mato Grosso do Sul: o verde que é água parida, o azul que é céu derretido, o dourado que é vida pulsante no imenso, sagrado, ventre alagado da Terra. Onde o céu não está acima; escorre. Escorre pelas raízes do mundo e banha a alma.
Comentário enviado com sucesso!
Carregando...