O ar sobre a Praça Antônio João hoje não carrega apenas o grito de "Taxa Já!" ou o lamento pelo fim da "Escalada 6x1". Ele carrega uma pergunta. Uma única, afiada como facão de roça, plantada no meio da multidão por um filósofo anônimo. E essa pergunta – "Quando foi que Dourados aceitou que um grão de soja valesse mais que o prato cheio de um filho seu?" – paralisou por um instante o coração da cidade. Não era um protesto. Era um espelho. Um espelho sujo de poeira vermelha, manchado de suor e lágrimas, refletindo uma verdade que todos conhecem, mas ninguém ousa nomear.
Dourados não é uma cidade ingênua. Sabe o peso do sol na nuca, o valor do boi gordo, o preço da saca no mercado futuro. Sabe contar. Mas quando a contagem vira condenação? Quando o cálculo econômico sepulta o cálculo humano? A pergunta não é sobre agricultura. É sobre valores. É sobre como uma sociedade define o que é sagrado.
"Quantos sacos de soja cabem no vazio do estômago de uma criança kaiowá na Reserva? Quantos caminhões carregados são necessários para tapar o buraco no orçamento da merenda escolar?"
O grito ecoa sobre os trilhos que cortam a cidade como cicatrizes, levando riqueza para longe enquanto a "Escalada 6x1" – essa política perversa que corta seis vezes mais na saúde e na educação do que nos privilégios de uma minoria – estrangula o presente e hipoteca o futuro. Quem se beneficia desse silêncio? Os super-ricos que lucram com a terra, mas cujos impostos não pingam no chão seco da periferia? Os políticos que transformaram o progresso em cifra, esquecendo que progresso sem dignidade é apenas especulação sobre ossos humanos?
Outras Perguntas que Dourados Precisará Responder no Espelho da História:
1. A PERGUNTA DA TERRA SAGRADA E DA FOME PROFANADA:
"Por que o vento que sopra sobre as plantações que alimentam o mundo não consegue levar um único grão de arroz até a oca onde uma anciã guarani chora de fome?"
Qual é o custo ético do agronegócio quando ele gera bilhões, mas não garante o básico aos herdeiros originais desta terra?
2. PERGUNTA DA CULPA COLETIVA:
"Até quando vamos fingir que o problema é ‘lá longe’, em Brasília, enquanto permitimos que o poder local vire refém de quem dita o preço da soja e o salário da fome?"
O silêncio de Dourados diante da desigualdade gritante não é também uma forma de cumplicidade?
3. PERGUNTA DO SACRIFÍCIO VÃO:
"Antônio João deu a vida por esta terra. Quantas vidas Dourados está dando, diariamente, em troca de quê? De um PIB que sobe enquanto o povo desce no ônibus lotado para o subemprego?"
O que restou do heroísmo fundador se hoje trocamos vidas por commodities?
4. PERGUNTA DA ESPERANÇA SEMENTEIRA:
"Se enterrarmos hoje a semente desta indignação na Praça, que cidade queremos colher amanhã? Uma onde o lucro de poucos é taxado para irrigar a dignidade de todos, ou uma onde a fome é colheita garantida?"
Silêncio que Seguiu a Pergunta Foi Mais Eloquente que Qualquer Grito
Não foi apenas perplexidade. Foi reconhecimento. Foi o choque de ver a própria dor traduzida em uma imagem tão crua e tão douradense: o grão dourado versus a criança pálida. O símbolo máximo da riqueza da região confrontado com o símbolo máximo de seu fracasso moral. A soja que move o mundo, mas não move a engrenagem da justiça em Dourados.
Este artigo não é reportagem. É um monumento de palavras erguido à pergunta que não pode morrer. Porque Dourados só será verdadeiramente Dourada quando responder, com ações concretas e coragem política:
Quando a taxação dos super-ricos deixar de ser utopia e virar lei local pressionada pelo povo.
Quando a "Escalada 6x1" for desmontada tijolo a tijolo pela força da indignação organizada.
Quando cada grão de soja exportado carregar, como imposto invisível, a promessa de um prato cheio nas mesas mais pobres da cidade.
Quando o valor de um filho de Dourados for inegociável, sagrado, intocável – mais precioso que toda a safra do mundo.
A pergunta foi lançada. Como semente em solo pedregoso. Cabe a Dourados decidir se ela vai germinar como revolução, ou se será engolida pelo silêncio cúmplice das colheitadeiras que passam, indiferentes, ao lado da fome que não conseguem – ou não querem – ver.
Que esta pergunta ecoe além da Praça. Que ela entre nas Câmaras, nos escritórios do agronegócio, nas cozinhas vazias. Que ela queime a consciência de Dourados até que a resposta brote, não como discurso, mas como realidade. Porque uma cidade que não se indigna quando seu filho vale menos que um grão, já perdeu sua alma. E Dourados é mais que isso. Tem que ser.