### Grandeza Filosófica de "Gita" (por Tácito Loureiro)

Poucas obras artísticas conseguem transcender os limites do tempo, da cultura e do espaço, alcançar o status de verdadeiro patrimônio artístico-cultural da humanidade. "Gita", a emblemática canção composta por Raul Seixas e Paulo Coelho, é uma dessas raridades. A música, lançada em 1974 no álbum homônimo de Raul, não é apenas a canção; é a epifania, a manifestação artística do profundo diálogo filosófico, espiritual e existencial. Inspirada no texto sagrado hindu Bhagavad Gita, ressignificada sob a ótica do tropicalismo rebelde e da contracultura, Gita é o convite ao autoconhecimento, à liberdade e à compreensão da unidade essencial de todas as coisas.

Antes de nos aprofundarmos na interpretação filosófica, apresentemos a letra completa da música:

Gita

Eu que já andei pelos quatro cantos do mundo procurando 
Foi justamente num sonho que Ele me falou
Às vezes você me pergunta por que é que eu sou tão calado 
Não falo de amor quase nada nem fico sorrindo ao seu lado 
Você pensa em mim toda hora me come, me cospe, me deixa 
Talvez você não entenda, mas hoje eu vou lhe mostrar
Eu sou a luz das estrelas 
Eu sou a cor do luar 
Eu sou as coisas da vida 
Eu sou o medo de amar 
Eu sou o medo do fraco 
A força da imaginação 
O blefe do jogador 
Eu sou, eu fui, eu vou
Eu sou o seu sacrifício 
A placa de contra-mão 
O sangue no olhar do vampiro 
E as juras de maldição 
Eu sou a vela que acende 
Eu sou a luz que se apaga 
Eu sou a beira do abismo 
Eu sou o tudo e o nada
Por que você me pergunta? Perguntas não vão lhe mostrar 
Que eu sou feito da terra, do fogo, da água e do ar 
Você me tem todo dia, mas não sabe se é bom ou ruim 
Mas saiba que eu estou em você, mas você não está em mim
Das telhas eu sou o telhado 
A pesca do pescador 
A letra "A" tem meu nome 
Dos sonhos eu sou o amor 
Eu sou a dona de casa 
Nos pegues pago o jornal 
Eu sou a mão do carrasco 
Sou raso, largo e final
Eu sou a mosca da sopa 
E o dente do tubarão 
Eu sou os olhos do cego 
E a cegueira da visão 
Eu 
Mas eu sou o amargo da língua 
A mãe, o pai e o avô 
O filho que ainda não veio 
O início, o fim e o meio
Eu sou o início, o fim e o meio

### Análise Filosófica: Unidade do Ser

Gita é a obra de arte que transcende os limites da música popular, alçando-se a reflexão filosófica sobre a condição humana e a natureza última da realidade. O título da música, uma referência direta ao Bhagavad Gita, sugere de imediato o vínculo com a ideia de que a existência é permeada por uma unidade essencial. O Bhagavad Gita é um dos textos centrais do hinduísmo, no qual Krishna revela a Arjuna a verdade sobre o dharma (dever), a alma universal e o caminho da libertação. A música, no entanto, transporta esses conceitos para um terreno mais universalista e acessível, fundi elementos espirituais, existenciais e culturais.

#### 1. Unidade e Multiplicidade do Ser

Na letra, o "eu poético" assume a posição do narrador que se identifica com "tudo e o nada". Ele é simultaneamente a luz das estrelas e o medo do fraco, o início e o fim, o amor e a maldição. Essa perspectiva é profundamente inspirada pela filosofia monista, que afirma que toda a realidade é a manifestação do único princípio fundamental. Essa ideia é central no hinduísmo advaita (não dualidade), que ensina que o Brahman (o absoluto) é a substância de todas as coisas. O "eu poético", ao dizer "Eu sou", ecoa a afirmação de Krishna no Gita: "Eu sou o sabor da água, o brilho do sol e da lua, o som do Aum nos mantras, o calor no fogo, e a vida em todos os seres".

A letra da música nos convida a refletir sobre a unidade essencial que permeia a existência. Não se limita ao papel ou à identidade: é tanto o bem quanto o mal, tanto a construção quanto a destruição. Essa visão rompe com a dualidade cartesiana que separa corpo e alma, sujeito e objeto, bem e mal, e nos conduz à compreensão holística da realidade.

#### 2. Autoconhecimento e Busca pelo Divino Interior

Ao afirmar "Eu estou em você, mas você não está em mim", o "eu poético" coloca o ouvinte diante do paradoxo existencial. A frase sugere que o divino, ou o absoluto, está presente em cada ser humano, mas que poucos reconhecem ou acessam essa presença. Isso remete à máxima socrática do conhece-te a ti mesmo, que também é um princípio central do Bhagavad Gita. Para Krishna, o autoconhecimento é o caminho para a libertação; para o "eu poético", é o caminho para compreender a totalidade de ser.

O narrador da canção, que poderia ser interpretado como uma personificação do absoluto, desafia o ouvinte a transcender as limitações de sua percepção e ver além das aparências. Ele é a "mosca da sopa" tanto quanto o "início, o fim e o meio". Essa aparente contradição reflete a natureza paradoxal do real, que é simultaneamente uno e múltiplo.

#### 3. Condição Humana e Liberdade

A canção Gita também aborda questões profundamente existenciais, como o medo, o desejo e a liberdade. "Eu sou o medo de amar" e "Eu sou o blefe do jogador" são referências à fragilidade humana diante da incerteza e da paixão. No entanto, ao reconhecer essas forças como parte de si mesmo, o narrador da canção reivindica uma liberdade radical: ele não está preso a nenhuma dessas condições, porque ele as transcende.

Essa perspectiva dialoga com a filosofia existencialista de pensadores como Jean-Paul Sartre, para quem a liberdade é a essência do ser humano. No entanto, Gita vai além: a liberdade não é apenas a capacidade de escolher, mas a capacidade de perceber que todas as escolhas, todos os papéis e todas as identidades são manifestações de uma única realidade.

#### 4. Arte como Revelação

Gita não é apenas o manifesto filosófico; é a obra de arte que utiliza os meios da música e da poesia para transmitir verdades universais. A repetição do "Eu sou" ao longo da canção cria o efeito quase hipnótico, que leva o ouvinte à experiência de transcendência. A música, com sua melodia grandiosa e a interpretação visceral, amplifica o impacto das palavras, torna a mensagem ainda mais poderosa.

### Conclusão: Patrimônio da Humanidade

Gita é muito mais do que uma música; é a obra filosófica, espiritual e artística de dimensões universais. Lembra que somos todos parte da mesma essência, que a dualidade é a ilusão e que o autoconhecimento é o caminho para a liberdade. Raul Seixas e Paulo Coelho, com a genialidade única, transformaram a sabedoria ancestral do Oriente em uma mensagem acessível, mas nunca simplista, para o público ocidental.

Por isso, Gita é um patrimônio artístico-cultural da humanidade. A obra transcende o tempo e o espaço, ilumina a nossa jornada rumo à compreensão do ser e do cosmos. Como diria o próprio Raul: "Eu sou o início, o fim e o meio" — e, por meio da música, ele verdadeiramente é.

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