O estetoscópio repousa frio sobre a mesa de consultório, enquanto o ecrã ao lado exibe gráficos de margens de lucro trimestrais. Esta imagem dissonante encapsula a crise silenciosa que corrói a medicina moderna: confundimos a ordem sagrada dos valores. Como médico que testemunha diariamente o sofrimento humano e os imperativos administrativos, proponho um manifesto radical: a Medicina deve hierarquizar claramente: 1º a Vida, 2º a Saúde, 3º o Lucro.
Paradoxo Mortal
Vivemos a era dos avanços médicos mais espetaculares da história – e simultaneamente, da mais profunda desumanização. Pacientes transformam-se em "casos" com códigos de faturação; doenças raras são negligenciadas por "falta de mercado"; hospitais fecham leitos de UTI enquanto abrem centros estéticos premium. O juramento de Hipócrates foi subjugado pela tirania do EBITDA.
Tríade Não Negociável:
1. Vida como Fundamento Absoluto:
Toda decisão clínica, política ou empresarial em saúde deve passar pelo crivo: "Isto preserva ou ameaça a existência humana?". Priorizar a vida exige:
- Acesso Universal a emergências, independente de carteira.
- Pesquisa voltada a pandemias e doenças negligenciadas, não apenas a fármacos "blockbuster".
- Tecnologias que salvam vidas (como desfibriladores públicos) antes de apps de "wellness" para elites.
2. Saúde como Missão Primária:
Saúde não é mera ausência de doença, mas plenitude física, mental e social. Implica:
- Prevenção radical: combate a determinantes sociais (fome, saneamento, educação).
- Cuidado longitudinal: do pré-natal ao paliativo, rompendo a lógica do "paciente-cliente episódico".
- Equidade: um indígena no Xingu vale tanto quanto um CEO em São Paulo.
3. Lucro como Ferramenta, Não Fim:
Quando o lucro precede a vida, temos monstros éticos:
- Remédios vitais com preços extorsivos.
- Planos de saúde que negam tratamentos por "experimentais".
- Hospitais que supermedicam para faturar.
Lucro na medicina só é legítimo quando reinvestido em inovação real, acesso e qualidade – jamais como objetivo último.
Casos Reais que Clamam por Mudança:
- Brasil, 2023: famílias percorrem 5 hospitais privados com criança em crise asmática – todos alegam "lotação". Enquanto isso, alas VIP de ortopedia permanecem vazias.
- EUA, 2024: startups de "longevidade" cobram US$ 10 mil/ano por protocolos não validados, enquanto 30 milhões deixam de comprar insulina.
- África, Hoje: 95% dos investimentos em saúde digital focam em apps de dieta, enquanto mulheres morrem de parto sem sangue para transfusão.
Caminho da Reconversão Ética:
- Regulação Inteligente: limitar lucros em setores essenciais (medicamentos de estoque, emergências).
- Indicadores de Sucesso Revolucionários: medir hospitais por "vidas salvas" e "qualidade de vida restaurada", não por rentabilidade.
- Formação Médica Humanocêntrica: ensinar futuros médicos a ler balanços é útil; ensiná-los que o balanço final é a dignidade humana é imperativo.
Conclusão: A Revolução do Óbvio
A medicina que prioriza lucros sobre vidas é um parasita que consome seu próprio hospedeiro. A verdadeira sustentabilidade nasce quando compreendemos: salvar vidas não é um custo – é o único capital imortal.
Exijamos sistemas onde um CEO de hospital se orgulhe mais de reduzir mortalidade infantil que dividendos. Onde um médico nunca precise escolher entre seu juramento e seu emprego. Onde o primeiro item do balancete seja: "Vidas Preservadas: ∞".
O futuro da medicina não está em novas pílulas, mas em velhos valores reavivados. A vida primeiro. Sempre.
Nota do Autor: este artigo é um grito de alerta baseado em 25 anos de prática médica em três continentes. A cura começa quando nomeamos o câncer que nos corrói: a inversão perversa dos fins e meios. A medicina pode ser viável e virtuosa – mas só se a virtude for seu alicerce.
