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As Correntes Invisíveis

Publicada em: 23/06/2025 09:14 - Literatura

Elena Ribeiro acreditava no poder das palavras. Como pedagoga no Centro Comunitário Sol Nascente, na periferia de São Paulo, dedicava-se a tecer diálogos onde outros só viam abismo. Até o dia em que as palavras viraram fogo. A fake news chegou como veneno pelos grupos de WhatsApp do bairro: acusações grotescas de "doutrinação comunista e de gênero" contra o centro. Elena assistiu, paralisada pela memória fantasma do irmão morto em outro conflito urbano, enquanto a multidão enfurecida, liderada por seu amigo de infância, Carlos – um pai de família pacato transformado em estranho cheio de ódio – incendiou anos de trabalho. As chamas consumiram mais que paredes; devoraram sua fé no diálogo e expuseram uma ferida antiga: a culpa por não ter previsto, por não ter protegido.

A destruição do Sol Nascente foi o portal para um mundo sombrio. Elena mergulhou nas entranhas digitais onde o ódio era fabricado. Infiltrou-se em grupos online de extrema-direita, estudou manuais antigos de propaganda e algoritmos modernos de desinformação. Descobriu a arquiteta invisível: Verônica Castro, uma estrategista de comunicação brilhante e glacial, mercenária de um sistema que ela chamou de "O Sistema Ressonante". Não era sobre ideologia; era sobre controle. O método era uma sinfonia perversa: inundação diária de medo e raiva através de notícias distorcidas ou falsas sobre violência e ameaças à família; simplificação maniqueísta que reduzia o mundo complexo a "nós contra eles"; slogans ocos repetidos ad nauseam em redes sociais, TVs aliadas e grupos de mensagem, criando uma ilusão de verdade; algoritmos que aprisionavam as pessoas em bolhas digitais onde só ecoavam seus medos e preconceitos; ataques sistemáticos a professores, jornalistas e cientistas, minando qualquer voz dissonante; a promessa enganosa de um salvador forte para um caos deliberadamente fabricado; e a corrosão da própria linguagem e razão, substituindo fatos por sentimentos e teorias conspiratórias.

Elena viu o veneno agir. Carlos, outrora racional, repetia frases feitas como um autômato, vendo inimigos em antigos vizinhos. Jovens promissores abandonavam os estudos, radicalizados por vídeos cheios de ódio e desinformação. O bairro definhava sob uma névoa de paranoia, onde o diálogo era impossível e o medo, o senhor. Quando Elena tentou alertar autoridades e imprensa, foi ridicularizada ou ignorada. Nas redes, tornou-se alvo: "esquerdopata", "idiota útil". As ameaças anônimas ecoavam seu trauma mais profundo, lembrando-a da morte do irmão, minando sua sanidade. Tentou confrontar Carlos, num último apelo à razão. Encontrou um estranho cheio de ódio, cego à amizade passada. Argumentos racionais esbarravam num muro de emoções tóxicas, alimentadas dia e noite pelo Sistema. Seu valor supremo, a empatia, parecia uma arma quebrada. A coesão social que desejava era um sonho despedaçado. Ela falhara. Novamente.

O golpe final do Sistema Ressonante veio como um terremoto: uma campanha massiva para semear dúvida sobre as eleições, pavimentando o caminho para o caos. O bairro estava à beira da guerra civil. E a descoberta mais dolorosa: jovens que Elena ajudara a tirar das ruas agora eram recrutados por milícias digitais do ódio. A prova irrefutável de como o Sistema devorava vidas. A culpa pelo irmão explodiu em seu peito como granada. Não podia falhar outra vez. A escolha era clara: fugir ou enfrentar o monstro com uma arma nova.

Na praça central, sob olhares hostis e ameaças sussurradas, Elena ergueu não um cartaz de protesto, mas um projetor e um microfone. Realizou seu "Workshop da Desconstrução Emocional". Com voz firme, apesar do coração aos pulos, expôs o mecanismo: mostrou, com exemplos reais e locais, como uma fake news era criada pixel por pixel, como o medo era inflado artificialmente, como o algoritmo invisível os mantinha presos numa câmara de eco do pânico. Em vez de atacar Carlos, humanizou-o: contou histórias do amigo solidário, mostrou fotos das famílias destruídas pela polarização fabricada, apelando para qualquer resquício de empatia. E lançou as perguntas que eram seu verdadeiro antídoto, martelando as correntes invisíveis: "Quem lucra quando você odeia seu vizinho?"; "O que você já perdeu – sua paz, seu tempo, suas amizades – por seguir essa raiva?"; "Como essa 'verdade' chegou até você? Ela quer que você sinta ou que você pense?". Olhou para a multidão confusa e irada e lançou o grito de guerra silencioso: "Eles não querem seu voto, querem seu MEDO. Seu MEDO é o produto que vendem. Você não é um soldado, você é o ALVO. Recuse-se a ser o produto!". Um silêncio pesado caiu. Até que um jovem, outrora radicalizado, tocado pela história de Carlos (seu ídolo local antes da transformação) e dilacerado pelas perguntas, deu um passo à frente. Com um gesto brusco e definitivo, arrancou o boné do grupo extremista e jogou-o no chão. Uma pequena fenda no feitiço coletivo.

Não foi um final feliz com faixas e aplausos. O Sistema Ressonante de Verônica Castro não morreu; adaptou-se, mutou-se, buscando novas fissuras. Mas no Sol Nascente, algo frágil e teimoso brotou das cinzas. Uma rede de resistência cognitiva se formou: grupos de checagem comunitária vasculhando notícias antes de compartilhar; círculos de diálogo "Antídotos" criando espaços para expressar medos sem julgamento, mas com perguntas que investigavam as fontes; aulas informais de alfabetização digital crítica em bares e igrejas. Carlos não voltou a ser o que era. O ódio derretido deixou um vazio de confusão e uma dor profunda – a primeira etapa de uma desintoxicação longa. Quando seus olhos encontraram os de Elena, não havia mais ódio, apenas uma dor imensa e um questionamento silencioso. Era um recomeço. Na penumbra de seu pequeno escritório reconstruído, Elena olhou para a foto desgastada do irmão. A culpa não desaparecera, mas transformara-se em determinação vigilante. Passou os dedos sobre o rosto sorridente na foto e sussurrou para o vazio e para si mesma: "Não foi só fogo que apagaram, foi o medo que tentaram plantar. E estamos reaprendendo a pensar." Abriu seu laptop, não para mergulhar nas trevas do ódio, mas para fortalecer a frágil e crescente rede de pensadores críticos. A batalha, percebeu agora com clareza cortante, não era por uma ideologia contra outra. Era pela soberania da própria mente. Era uma guerra sem fim, travada pergunta por pergunta, pensamento crítico por pensamento crítico, contra as correntes invisíveis que buscavam dominá-los.

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